O homem de expressão impaciente, dir-se-ia que amargurada, para dar mais dramatismo à cena, está estranhamente calmo, sentado numa cadeira velha, à sombra de uma árvore numa qualquer encruzilhada de caminhos desertos e empoeirados da terra batida. Na mão segura o revólver que aponta à sua própria cabeça. Para o tiro fatal pouco falta. Talvez, pensa quem está de fora, alguma palavra acertada dita na hora certa consiga evitar esta saída pouco higiénica mas, decididamente, teatral e quase que garantida. (Que casos já houve em que o garantido ficou no orifício traseiro da galinha).
Mas quem vai saber qual é a palavra certa na hora acertada? A hora será com certeza qualquer uma antes do tiro, mas como chegar ao cérebro do suicida antes da bala?
Conhecessemos nós as palavras certas e não haveria no mundo tantos amantes infelizes. As palavras são, sem dúvida, a arma mais mortífera para quem não tem nas mãos um revólver, que lirismos à parte, é pela bala que se mata e por ela que se morre.
E o nosso homem seguramente não segura palavras. Com os dedos tensamente fechados sobre o punho do colt, parece esperar a distração da coragem.
Alguém que viu a cena, um familiar, por certo - que naqueles vilarejos dos Estados Unidos é difícil alguém ver alguma coisa, tal é a secura do deserto e da gente que por ali escasseia - chama a polícia, com a esperança que com ela venha o especialista das palavras.
Mas a polícia é peremptória: para o revolver negociar este tem de estar na sua mão e não na mão do outro!
E toca então de cercar o nosso "desperado" por todos os lados e de o pôr na mira de dezenas de outros colts, tão mortíferos como o dele, mas com autorização legal para matar.
- Pouse a arma imediatamente, senão disparamos! - grita o xerife, orgulhoso do cerco tão perfeito que os seus homens foram capazes de formar.
O suicida hesita. Vemos nos seus olhos incrédulos o absurdo da situação: então ele ameaça matar-se e eles ameaçam matá-lo se ele se matar?
Olha em redor. Talvez a prolongar aqueles breves segundos da resposta esperada, talvez à procura de ouvir a palavra que necessita. Mas tudo o que ouve é de novo a voz do xerife.
- Pouse a arma imediatamente, senão disparamos!
E ele, o nosso suicida, sorri num esboçar de lábios só perceptível à tele-objetiva, provavelmente uma 200 mm, que não terá a melhor lente a desenhar rostos, mas que à distância a que a câmara se encontra, atrás da linha policial, só ela nos poderá desvendar aquele levantar do canto da boca.
Ele estava ali, com o dedo no gatilho, há mais de uma hora. Apercebera-se que perdera entretanto a coragem, que lhe passara o desespero cego da solução final. Mas agora havia que convencer o dedo a largar o gatilho. Havia que criar a verdadeira coragem de sair dali com as mãos nos bolsos. Mas o dedo espera a palavra certa. Talvez aquela que lhe dissesse que amanhã seria outro dia, que só aquilo não teria solução, que... sabe lá ele. E sabemos lá nós, que achamos sempre que sabemos tudo! Ele já nem mesmo se lembra o que foi que o fez ir para ali... Recorda-se só que quando se sentou à sombra da árvore tudo o que queria era tirar o peso do sol de cima dos ombros. E de repente deu por si com a arma encostada à cabeça e o olhar de desespero da mulher a rodeá-lo que nem abutre.
Como é que a arma lhe tinha ido para às mãos? Qual teria sido a linha de pensamento a despoletar o dedo e a fazê-lo crer que a bala seria mais leve que a sombra?
Ele não sabe... tenta lembrar-se, mas tudo o que vê é a mulher aos gritos, aflita. Não lhe entende as palavras, que o hábito de quem vive junto por muito tempo tem destas coisas. Mas sente-lhe a aflição sincera. Sim... ainda gosta muito dela, mas já não se lembra porquê... Ela chora... Ah, se ela chorasse menos talvez não o distraísse tanto... que as mulheres têm destas coisas: distraem-nos!
A polícia mantém-se atrás dos carros, de arma em punho sobre o suicida.
A mulher já não grita. Tenta balbuciar ao xerife que o marido não mata nem uma mosca - que com o sol castigador que está, só mesmo as moscas conseguem voar, pois, até prova em contrário, as almas não voam... Ah, e se o nosso homem está rodeado de almas... de almas que lhe gritam torturantes «Fá-lo!». Como é possível que ninguém mais as ouça?... - Onde está o vosso especialista das palavras certas?? - parece perguntar a mulher de carne e expressão secas, que àquele lugarejo esquecido por Deus, do Sonho Americano só o desemprego e a miséria chegaram. Até o xerife, janota e já de braços alimentados e tez mais rosada, veio da cidade, a largas milhas de distância. Ele, cavaleiro sem cavalo, ordena-lhe que se retire - Para trás da linha de segurança. Melhor para casa, e pode levar as moscas! - Esta última parte não a diz, claro, as sente-se-lhe na voz incomodada e politicamente correta. - A gente resolve isto!
"Isto" é o pais dos seus filhos...
E ele, o pai, o marido, teria talvez acreditado nela, teria provavelmente adiado a morte para o acaso da vida futura, mas o brilho dos carros não lhe permite ver a sombra do rosto da mulher na ombreira da porta.
O sorriso mantém-se... ele perdera entretanto a coragem, que a coragem é como o tubarão, que, se o sangue não lhe chega aos sentidos poupa a vítima, que acabará eventuamente por morrer do pânico, mas não da bala... Alegorias metafóricas à parte, que o mar está muito longe desta secura de road movie, o seu tubarão havia-lhe rodeado a dor por alguns instantes, mas não tendo avistado sangue foi embora para as águas quentes da costa, antes mesmo de a polícia chegar.
E agora? O revólver não está registado, mais problemas, talvez passe a noite na cadeia... Ah... Que chatice! E que pouca vontade ele tem de passar a noite na cadeia! A sombra ali está tão agradável... a árvore, tão frondosa... Como é possível nunca ter reparado nela a não ser para descarregar águas?
Não, não vai passar a noite na cadeia! E sorri ainda mais, pela coragem da decisão finalmente tomada!
Afasta ligeiramente a mão da cabeça, vira zombeteiro o olhar para o xerife, e antes que possa focar-lhe a cara sob o escuro da aba do chapéu, uma saraivada de balas crava-se na árvore atrás dele, algumas levando já o seu sangue.
A mulher grita. A voz dela é o único som a quebrar a tórrida paisagem que para um português seria quase tão grande e tórrida como a alentejana...
O marido jaz no chão, no banho vermelho e sombreado pelas folhas opacas. No seu rosto, um enigmático sorriso de agrdecimento pela colaboração dos homens da lei!
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Moral da história em forma de pergunta para xerifes de filmes americanos: Mas que ideia estúpida é essa de apontar uma arma a quem se está a querer matar?
Mas quem vai saber qual é a palavra certa na hora acertada? A hora será com certeza qualquer uma antes do tiro, mas como chegar ao cérebro do suicida antes da bala?
Conhecessemos nós as palavras certas e não haveria no mundo tantos amantes infelizes. As palavras são, sem dúvida, a arma mais mortífera para quem não tem nas mãos um revólver, que lirismos à parte, é pela bala que se mata e por ela que se morre.
E o nosso homem seguramente não segura palavras. Com os dedos tensamente fechados sobre o punho do colt, parece esperar a distração da coragem.
Alguém que viu a cena, um familiar, por certo - que naqueles vilarejos dos Estados Unidos é difícil alguém ver alguma coisa, tal é a secura do deserto e da gente que por ali escasseia - chama a polícia, com a esperança que com ela venha o especialista das palavras.
Mas a polícia é peremptória: para o revolver negociar este tem de estar na sua mão e não na mão do outro!
E toca então de cercar o nosso "desperado" por todos os lados e de o pôr na mira de dezenas de outros colts, tão mortíferos como o dele, mas com autorização legal para matar.
- Pouse a arma imediatamente, senão disparamos! - grita o xerife, orgulhoso do cerco tão perfeito que os seus homens foram capazes de formar.
O suicida hesita. Vemos nos seus olhos incrédulos o absurdo da situação: então ele ameaça matar-se e eles ameaçam matá-lo se ele se matar?
Olha em redor. Talvez a prolongar aqueles breves segundos da resposta esperada, talvez à procura de ouvir a palavra que necessita. Mas tudo o que ouve é de novo a voz do xerife.
- Pouse a arma imediatamente, senão disparamos!
E ele, o nosso suicida, sorri num esboçar de lábios só perceptível à tele-objetiva, provavelmente uma 200 mm, que não terá a melhor lente a desenhar rostos, mas que à distância a que a câmara se encontra, atrás da linha policial, só ela nos poderá desvendar aquele levantar do canto da boca.
Ele estava ali, com o dedo no gatilho, há mais de uma hora. Apercebera-se que perdera entretanto a coragem, que lhe passara o desespero cego da solução final. Mas agora havia que convencer o dedo a largar o gatilho. Havia que criar a verdadeira coragem de sair dali com as mãos nos bolsos. Mas o dedo espera a palavra certa. Talvez aquela que lhe dissesse que amanhã seria outro dia, que só aquilo não teria solução, que... sabe lá ele. E sabemos lá nós, que achamos sempre que sabemos tudo! Ele já nem mesmo se lembra o que foi que o fez ir para ali... Recorda-se só que quando se sentou à sombra da árvore tudo o que queria era tirar o peso do sol de cima dos ombros. E de repente deu por si com a arma encostada à cabeça e o olhar de desespero da mulher a rodeá-lo que nem abutre.
Como é que a arma lhe tinha ido para às mãos? Qual teria sido a linha de pensamento a despoletar o dedo e a fazê-lo crer que a bala seria mais leve que a sombra?
Ele não sabe... tenta lembrar-se, mas tudo o que vê é a mulher aos gritos, aflita. Não lhe entende as palavras, que o hábito de quem vive junto por muito tempo tem destas coisas. Mas sente-lhe a aflição sincera. Sim... ainda gosta muito dela, mas já não se lembra porquê... Ela chora... Ah, se ela chorasse menos talvez não o distraísse tanto... que as mulheres têm destas coisas: distraem-nos!
A polícia mantém-se atrás dos carros, de arma em punho sobre o suicida.
A mulher já não grita. Tenta balbuciar ao xerife que o marido não mata nem uma mosca - que com o sol castigador que está, só mesmo as moscas conseguem voar, pois, até prova em contrário, as almas não voam... Ah, e se o nosso homem está rodeado de almas... de almas que lhe gritam torturantes «Fá-lo!». Como é possível que ninguém mais as ouça?... - Onde está o vosso especialista das palavras certas?? - parece perguntar a mulher de carne e expressão secas, que àquele lugarejo esquecido por Deus, do Sonho Americano só o desemprego e a miséria chegaram. Até o xerife, janota e já de braços alimentados e tez mais rosada, veio da cidade, a largas milhas de distância. Ele, cavaleiro sem cavalo, ordena-lhe que se retire - Para trás da linha de segurança. Melhor para casa, e pode levar as moscas! - Esta última parte não a diz, claro, as sente-se-lhe na voz incomodada e politicamente correta. - A gente resolve isto!
"Isto" é o pais dos seus filhos...
E ele, o pai, o marido, teria talvez acreditado nela, teria provavelmente adiado a morte para o acaso da vida futura, mas o brilho dos carros não lhe permite ver a sombra do rosto da mulher na ombreira da porta.
O sorriso mantém-se... ele perdera entretanto a coragem, que a coragem é como o tubarão, que, se o sangue não lhe chega aos sentidos poupa a vítima, que acabará eventuamente por morrer do pânico, mas não da bala... Alegorias metafóricas à parte, que o mar está muito longe desta secura de road movie, o seu tubarão havia-lhe rodeado a dor por alguns instantes, mas não tendo avistado sangue foi embora para as águas quentes da costa, antes mesmo de a polícia chegar.
E agora? O revólver não está registado, mais problemas, talvez passe a noite na cadeia... Ah... Que chatice! E que pouca vontade ele tem de passar a noite na cadeia! A sombra ali está tão agradável... a árvore, tão frondosa... Como é possível nunca ter reparado nela a não ser para descarregar águas?
Não, não vai passar a noite na cadeia! E sorri ainda mais, pela coragem da decisão finalmente tomada!
Afasta ligeiramente a mão da cabeça, vira zombeteiro o olhar para o xerife, e antes que possa focar-lhe a cara sob o escuro da aba do chapéu, uma saraivada de balas crava-se na árvore atrás dele, algumas levando já o seu sangue.
A mulher grita. A voz dela é o único som a quebrar a tórrida paisagem que para um português seria quase tão grande e tórrida como a alentejana...
O marido jaz no chão, no banho vermelho e sombreado pelas folhas opacas. No seu rosto, um enigmático sorriso de agrdecimento pela colaboração dos homens da lei!
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Moral da história em forma de pergunta para xerifes de filmes americanos: Mas que ideia estúpida é essa de apontar uma arma a quem se está a querer matar?
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