sábado, 30 de agosto de 2008

VINTE QUILOS DE AMIGOS (ou Carta que escrevi aos meus amigos neste dia)


O amor... Ah, o amor...

O amor tem destas coisas. Rouba, tal ladrão furtivo na calada da noite, sorrisos insones aos lábios tristes. Como os meus, neste momento.

E o que é afinal esse amor, que parece andar na boca de todos, mas nos lábios de tão poucos?

Que me perdoem Camões, Shakspeare e Pushkin pela simplicidade das minhas palavras, mas amor é mesmo coisa simples: é aquilo que fica depois de o tempo ter levado tudo. Nada mais, nada menos!

E mais em tempo, do que em amor, pensava eu quando aqui me sentei a escrever. Não sei porque me terá vindo a palavra amor mais rápida aos dedos que o tempo ao pensamento.

Seja como for, que fique o amor para trás e venha o tempo.

Vinte anos!

Vinte anos é muito tempo para quem está à porta dos quarenta. É metade da vida. E a vida, diz o povo, não tem preço. Logo, metado do que não tem preço, sem preço fica!

Faz precisamente hoje vinte anos que fiz a minha primeira viagem de avião. Ao contrário do que poderiam as almas mais românticas imaginar, não a considero especial por ter sido a primeira, mas por ter sido realmente a única viagem digna de tal nome que alguma vez empreendi na vida, na tal que não tem preço.

No dia 30 de Agosto de 1988, há precisamente vinte anos, embarcava eu, com a leveza do ar quente nos pés, os sonhos do mundo no peito e 20 Kg de passado na bagagem, na viagem que mudaria para sempre o rumo dos meus amores.

Partia então para o país dos Sovietes para me estabelecer na sua capital, Moscovo.

Não quero, e não poderia, falar do que senti, do que vivi, do que conheci e do que experenciei. Como diria o Luiz, o meu primeiro contacto brasileiro em Moscovo e, posteriormente, o meu grande amigo para a vida: «Quem passa aqui uma semana regressa para o seu país e tem material para escrever um livro. Quem passa um mês, escreve um artigo. Quem vive aqui mais de um ano, não escreve porra nenhuma!».

E eu, que vivi lá nove anos de “porra nenhuma” não saberia nunca como transmitir o som seco do trambolhão dado na neve. E, já vêem, sem isso é impossível escrever o que quer que seja da Rússia.

Desencantem-se os saudosistas que acharam que vim aqui falar de “babuskas” e “obshagas”. Venho aqui falar daquilo que cada um de nós mais gosta de falar: de si próprio. Venho aqui falar de mim e quem não quiser ler que desvie os olhos, porque hoje sou senhora de 20 anos de viagem e vou passar, quer vocês queiram, quer não!

E com 20 anos de viagem sou uma quase quarentona. Moro em Lisboa, tenho um Volkswagen Polo verde, apesar de ser do Benfica, pago um andar em Campolide, corro pelas manhãs em Monsanto e, à parte disso, tenho uma vida rotineira: Luzes, câmara e acção, noites onde calha, folgas quando posso, amigos quando vejo, camas onde caio, homens onde durmo.

Como vêem, uma vida do mais normal possível.

E porque as vidas normais têm momentos de relaxe, sento-me na esplanada de um café. Observo a cidade e as pessoas à minha volta: os rostos de traços familiares, as bicas mil vezes sorvidas, os pastéis de nata (que a meu ver deveriam ser tombados como o Património Maior da Humanidade) nas bocas de língua materna. Tudo tão meu, tão próximo, tão querido... e no entanto, tudo tão imensuravelmente distante.

Quem destas pessoas poderá algum dia entender o que eu penso sem entender o que é escorregar e cair na neve da Rússia? Quantas sequer entendem o que é que eu quero dizer com isto?

E este fosso eterno, de não ter palavras para o “porra-nenhuma” do Luiz, roi silencioso o caminhar dos meus dias comuns. O caminhar que faço com os meus 20 quilos de vida e 40 anos de carga!

Venho para casa e olho-me ao espelho. Dependendo dos dias, gosto ou não do que vejo. Hoje, gosto.

Sozinha que estou na casa de banho (depois do último “defunto” que mandei às favas, não me tem apetecido repartir a pasta de dentes) olho o meu reflexo e, como seria normal, vejo um rosto, o meu, de lábios finos, olhos verdejantemente a sobressairem na tez bronzeada do dia de trabalho na praia (foi mesmo trabalho, imagine-se!), cabelo, como sempre, indomavelmente no ar... a Dina de todos os dias. No entanto, absorta que estou nos meus pensamentos, alguém, por detrás do meu ombro, espreita furtivamente, num piscar de olhos. Viro-me para trás. Estranho... não há ninguém... volto-me para a frente e de novo, no reflexo do espelho, surge não um rosto, mas vários. Muitos. Todos sobrepostos ao meu, todos no meu, todo o meu.

Não, não consumo drogas nem tenho múltiplas personalidades. Eu sou eu. E sou muitos. Sou todos aqueles que por mim passaram, por quem eu passei nos nove anos de Rússia. Sou a soma de centenas de pessoas que de alguma forma formaram a forma que tenho, o meu D(i)NA.

Foram tantos, tantos que lhes perdi a conta. De alguns lembro-me bem dos nomes, de outros já esqueci. Mas a todos, a todos, vejo no espelho do meu rosto.

Lá está a Maria, a primeira que conheci, ainda em Lisboa, tão honesta quanto o seu nome... A minha querida Maria do Rosário, a única punk alentejana que vi na vida, aparentemente frágil e, no entanto, tão sóbria e imperiosa quanto as árvores da sua terra.

E lá estão as outras portuguesas que foram comigo: as minhas primeiras colegas de quarto: a doce e romântica Fátima, do Barreiro, com suas falsas dietas que terminavam sempre em raids noturnos à panela do jantar, e a persistente Grabriela, açoreana, a quem me curvo por sua força interior não só para ser a melhor, mas também para depilar as pernas com a pinça, pelo a pelo. E ali está a Cristina, preocupada com a sua colecção de chapéus, tão engraçada... e a Susana, sempre meiga, sempre pronta a dar um sorriso, e a Maria João, mais uma alentejana, esta esperta, mais parecida comigo, mas com aquela mesma “chaparrice” que só os alentejanos conseguem ter na sinceridade do sorriso. E eis o Alvarinho, o nosso menino entre as meninas, o mais sorridente de todos (com tanta mulher à volta, também eu...). Àquele sorriso de delicadeza em pessoa eu confiaria a vida. Jamais o vi proferir palavra menos agradável contra quem quer que fosse. Ah... E ali está o Etelvino, meu Deus, enfiado na camisa de forças e ainda ameaçando a professora de a jogar pela janela do segundo andar. Graças a ele conheci um manicómio russo por dentro. E a Catarina, sempre tão segura da ponta do seu florete... Foram tantos...

Mas para lá dos portugueses abriu-se-me um horizonte de povos de quem passei a fazer parte: a pequena Ximenita e seu namorado, ainda mais pequeno, o Juan – ela de Cochabamba, ele de San Domingo. E ali está aquela peruana que era fufa e que dizia que gostava de mim «pero no sexualmente, sólo como irmana» e aquele seu compatriota que sempre vinha ao meu quarto para eu lhe cortar o cabelo porque, dizia ele, «tienes cara de quién entiende de cabezas». Ali estão as misteriosas muçulmanas com seu mundo estranhamente distante e seus corpos tão femininamente iguais ao meu; e as vietnamitas, sempre tão mexidas, como se tivessem pilhas. Fascinam-me. Até mesmo aquela vietnamita pequenina que namorava com aquele finlandês enorme. Sempre que os via juntos, não conseguia deixar de os imaginar na cama... E as gregas... a Nina, por exemplo, tão meiga, tão apaixonada pelo Enrique cubano, disposta a seguí-lo ao quinto dos infernos e ele, com sua irrepreensível delicadeza e boa educação, não lhe dava mais que isso mesmo: delicadeza e boa educação (depois... muitos anos depois, viria a saber porquê, mas isso seria história para outra escrita).

O Enrique... ah, o Enrique... grande amigo, insubstituível. Muitas histórias de noites dormidas no mesmo quarto.

E talvez por ter chegado às Américas, vejo aos meus queridos brasileiros: a doida da Adriana, a quem eu adorava por não ter um único parafuso no lugar; os meus 3 «maridos»: o Jusça, o meu apoio moral, que me dava a sua cama quando eu queria esconder-me do mundo; o sindicalista do Sérgio, no sindicato de quem eu, sendo trabalhadora de fábrica, provavelmente não me inscreveria, mas à conversa e amizade de quem eu não consegui nunca resistir. Chegou apaixonadíssimo pela... como era mesmo o nome dela?... não interessa! Saiu casado com a Élia e isso foi o que passou à História, que hoje é uma menina e tem o nome de Sofia. Quem não saiu casada fui eu, que para isso estava lá o terceiro dos meus «maridos», o “meu Zirão”, aquele que trago ainda hoje no interior da pálpebra e vejo quando fecho os olhos. Acabou nunca sendo meu e, no entanto, vem dormir todas as noites dentro do meu olho. Estranho este mundo, ei?

Ops, acabei de ver o Almir... ah, meu grande Almir, o sonho encarnado da mulherada na Rússia. O charme e a educação em pessoa. Um homem com uma capacidade raríssima entre os homens não gays: o de parecer que nos ouve quando falamos!

Se ouve ou não, é irrelevante! O que interessa é que parece ouvir! (E não será isso o que qualquer pessoa necessita? Os seus cinco minutos de atenção?).

Estou ciente que o Almir nunca se apercebeu realmente do quanto é importante para mim. Não faz mal... Eu sei o quanto ele me é vital, e isso basta-me!

Ora... e quase que passava pelo Luiz sem o cumprimentar. O “Luitchi”, o tal da frase inicial, que para lá das piadas e dos peidos que mantinham as plantas vivas, foi, sem dúvida, o amigo mais constante e sereno que tive na Rússia. Aquela sensação de o ter sempre ali, sempre Luiz, era maravilhosa. Assim como maravilhosa foi a Josilda, que ele traria tempos depois para as nossas vidas e seu casamento (de quem tive a honra de ser madrinha).

Já no VGIK apareceria a viking Maria, a minha companheira filandesa de armas que só impunha respeito no tamanho do corpo e das pernas, porque a guarda-costas de verdade era sempre eu. Sem dúvida uma das pessoas mais inteligentes que conheci. E falando em cabelos, eis ali o cabelo rebelde da Tatiana, a minha querida irmã mexicana de muitas noites pouco ou nada dormidas, trocadas por conversas sobre política, filosofia, economia... ou sexo, tanto fazia, desde que nos ouvissemos uma à outra. E por falar em mexicanas, olhem para a misteriosa Ileana, que fala tanto e nunca diz nada para não se comprometer. Ela só se comprometeria mesmo era com o Almir, mas esse nunca foi para o dente dela.

E vejam os meus colegas de turma, todos homens, todos com medo de mim, desta “estranha mulher que quer fazer trabalho de gajo”. Ganhei-lhes por persistência e aquilo passou-lhes. Aceitaram-me no grupo e fizeram-me a maior honra que homem russo pode fazer a uma mulher: embebedaram-me e levaram-me em braços para a neve, para me friccionarem a cara nela.

Tenho tantas pessoas de quem gostaria de falar, mas outros vinte anos não me chegaria para vos contar da negra Mercedes; da exótica Tamâra; do lindo e alcoólico Senatov, do democrata e pró-Bush Shane e da Kátya, a horripilantemente louca namorada (hoje esposa) dele; do Arshar, o cantor de ópera homofóbico que só gostava de homens; do Mário moçambicano, calmo como a savana africana na estação das chuvas; do culto suiço Michele por quem o Arshar tinha uma paixão reprimida; das irmãs argentinas, companheiras de canasta e outras jogatinas de lágrimas e risos; do amoroso casal Hannes e Petra; do lindo judeu alemão-russo Pestov e sua namorada casaca com carinha de chinesa; do divertidíssimo e simpático Inigo, do traidor do Phillip, do “very british” dos ingleses do meu último ano; da minha valente coreana Iun Hi que despertava paixões nos compatriotas; do meu vizinho curdo que cozinhava o mundo para conquistar os corações femininos; da senhora da “vakhtia” que se fazia de má e da senhora da “potchta” que se fazia de boa; da marechala Stortchak, a temível “vsemogutchii” do VGIK; do Fernando argentino, o melhor cozinheiro do mundo, com me havia cruzado num 25 de Abril em Moscovo, mas que só viria a conhecer já em Portugal muitos anos depois, do meu querido e amado master Leonid Kalashnikov, que me fez ver a luz onde os demais viam sombra.

Perdoem-me aqueles que não mencionei, mas vinte anos mais tivesse eu a escrever e não me chegaria o engenho e a arte para vos fazer jus.

Moscovo trouxe à minha vida, directa ou indirectamente, por muitos anos ou alguns dias somente, em vidas conjuntas ou furtivos encontros, centenas de pessoas que fizeram, literalmente, de mim quem eu hoje sou. Não recordo o nome da maioria, não lembro sequer da cara de muitos, mas eles estão cá, nos poros por onde respiro o mundo. Eles estão comigo onde eu estou, nos meus 20 quilos de bagem. Escrevem por estes dedos que teclo, sentam-se à mesa da esplanada a saborear o meu pastel de nata e olham-se ao espelho no meu rosto.

E a mim, e a eles, todos tão diferentes – por vezes opostos, por vezes zangados – une-nos o facto de sabermos o que é dar um trabolhão na neve. Desengane-se quem acha que a nudez compromete: estar junto de alguém no momento que cai na neve russa é a maior cumplicidade que dois seres humanos podem alguma vez ter. E quem não entende isso não poderá nunca respirar-se nos meus poros!

Para mais, hoje em dia, a cumplicidade parece estar fora de moda, ao contrário do iPod. Dizer às pessoas que as amamos é sempre algo que parece não ser necessário, como se necessário fosse só comprar a porcaria do tal iPod, ou do Polo verde, que é do Benfica.

Mas eu, e de mim disse que ia falar, quando a morte me procurar, depedir-me-ei agradecida da vida por me ter honrado os melhores companheiros de viagem que ser humano algum pode desejar. Quando a morte me vier pegar pela mão, terei já com ela escrito esta carta para dizer a todas essas pessoas o quanto as amo imensuravelmente e as trago dia-a-dia dentro e fora de mim, o quanto as vejo constantemente em pequenos promenores, as sinto em pequenos odores, as procuro em pequenas coisas. Terei com ela agradecido a esses companheiros de viagem todos momentos, todos os segundos daqueles nove anos de 20 quilos que fazem hoje 20 anos. Ter-lhes-ei já dito, que só quando essa morte me levar é que a terra os levará do meu pensamento.

Só quem tem pessoas como vocês nos lábios, pode sorrir em dia triste. Vocês engrandeceram-me a alma, e tudo passou a valer a pena!

Amo-vos muito, com a mesma naturalidade com que se cai na neve...

Hoje à noite abrirei uma garrafa de vinho bom e brindarei sozinha, com vocês todos à minha volta! E se eu me embebedar, levem-me em braços que estou a precisar...

Dina Paulista

PS – E afinal, isto estava mesmo destinado a ser uma carta de amor!

sábado, 9 de agosto de 2008

Os vinte anos do gato

Fez ontem 20 anos,
Precisamente 20 anos que eu vesti a minha camisa favorita.
Não me lembro dela, a não ser que era azul,
(Eu sempre gostei de azul na roupa, e vermelho na alma)
Para falar a verdade, não estou segura
que a camisa fosse mesmo a favorita
Mas devia ser.
Senão porque a vestiria eu
Naquele dia
Que seria o primeiro
Do início
Dos restantes dias
Dos meus 20 anos seguintes?

Foi ontem,
Há precisamente 20 anos,
Que fui comemorar com a minha camisa
Que deveria, de certeza, ser a favorita.
Cheguei a casa tarde.
Não me lembro das horas,
Mas devia ser tarde.
Ninguém comemora cedo.
Fui dançar... sim, dancei muito.
E deitei-me com com a roupa
e o peito a bater forte por debaixo da camisa
que deveria ser a favorita
Disso lembro-me bem!
É a única coisa que lembro
... e a cor da camisa.

Dia 8 do 8 do 88
Número da sorte para os chineses,
Dia em que soube que ia para a URSS estudar.

Haja chinês com a minha sorte!

Melhor que eu só os gatos,
Que têm sete numa vida de 20 anos!