domingo, 29 de agosto de 2010

Filosofia Barata I

A diferença crucial entre os regimes comunistas e capitalistas é que no comunismo limpamos a boca às coisas do ânus, ou seja, colocamos o rolo de papel higiénico na mesa quando se nos acabam os guardanapos, e no capitalismos limpamos o ânus às coisas da boca, que é como quem diz, recorremos aos guardanapos quando nos apercebemos que esquecemos de comprar papel higiénico 'logo agora'!

Quem viveu nos dois regimes sabe do que falo.

domingo, 15 de agosto de 2010

À sombra da árvore

O homem de expressão impaciente, dir-se-ia que amargurada, para dar mais dramatismo à cena, está estranhamente calmo, sentado numa cadeira velha, à sombra de uma árvore numa qualquer encruzilhada de caminhos desertos e empoeirados da terra batida. Na mão segura o revólver que aponta à sua própria cabeça. Para o tiro fatal pouco falta. Talvez, pensa quem está de fora, alguma palavra acertada dita na hora certa consiga evitar esta saída pouco higiénica mas, decididamente, teatral e quase que garantida. (Que casos já houve em que o garantido ficou no orifício traseiro da galinha).

Mas quem vai saber qual é a palavra certa na hora acertada? A hora será com certeza qualquer uma antes do tiro, mas como chegar ao cérebro do suicida antes da bala?

Conhecessemos nós as palavras certas e não haveria no mundo tantos amantes infelizes. As palavras são, sem dúvida, a arma mais mortífera para quem não tem nas mãos um revólver, que lirismos à parte, é pela bala que se mata e por ela que se morre.

E o nosso homem seguramente não segura palavras. Com os dedos tensamente fechados sobre o punho do colt, parece esperar a distração da coragem.

Alguém que viu a cena, um familiar, por certo - que naqueles vilarejos dos Estados Unidos é difícil alguém ver alguma coisa, tal é a secura do deserto e da gente que por ali escasseia - chama a polícia, com a esperança que com ela venha o especialista das palavras.

Mas a polícia é peremptória: para o revolver negociar este tem de estar na sua mão e não na mão do outro!

E toca então de cercar o nosso "desperado" por todos os lados e de o pôr na mira de dezenas de outros colts, tão mortíferos como o dele, mas com autorização legal para matar.

- Pouse a arma imediatamente, senão disparamos! - grita o xerife, orgulhoso do cerco tão perfeito que os seus homens foram capazes de formar.

O suicida hesita. Vemos nos seus olhos incrédulos o absurdo da situação: então ele ameaça matar-se e eles ameaçam matá-lo se ele se matar?

Olha em redor. Talvez a prolongar aqueles breves segundos da resposta esperada, talvez à procura de ouvir a palavra que necessita. Mas tudo o que ouve é de novo a voz do xerife.

- Pouse a arma imediatamente, senão disparamos!

E ele, o nosso suicida, sorri num esboçar de lábios só perceptível à tele-objetiva, provavelmente uma 200 mm, que não terá a melhor lente a desenhar rostos, mas que à distância a que a câmara se encontra, atrás da linha policial, só ela nos poderá desvendar aquele levantar do canto da boca.

Ele estava ali, com o dedo no gatilho, há mais de uma hora. Apercebera-se que perdera entretanto a coragem, que lhe passara o desespero cego da solução final. Mas agora havia que convencer o dedo a largar o gatilho. Havia que criar a verdadeira coragem de sair dali com as mãos nos bolsos. Mas o dedo espera a palavra certa. Talvez aquela que lhe dissesse que amanhã seria outro dia, que só aquilo não teria solução, que... sabe lá ele. E sabemos lá nós, que achamos sempre que sabemos tudo! Ele já nem mesmo se lembra o que foi que o fez ir para ali... Recorda-se só que quando se sentou à sombra da árvore tudo o que queria era tirar o peso do sol de cima dos ombros. E de repente deu por si com a arma encostada à cabeça e o olhar de desespero da mulher a rodeá-lo que nem abutre.

Como é que a arma lhe tinha ido para às mãos? Qual teria sido a linha de pensamento a despoletar o dedo e a fazê-lo crer que a bala seria mais leve que a sombra?

Ele não sabe... tenta lembrar-se, mas tudo o que vê é a mulher aos gritos, aflita. Não lhe entende as palavras, que o hábito de quem vive junto por muito tempo tem destas coisas. Mas sente-lhe a aflição sincera. Sim... ainda gosta muito dela, mas já não se lembra porquê... Ela chora... Ah, se ela chorasse menos talvez não o distraísse tanto... que as mulheres têm destas coisas: distraem-nos!

A polícia mantém-se atrás dos carros, de arma em punho sobre o suicida.

A mulher já não grita. Tenta balbuciar ao xerife que o marido não mata nem uma mosca - que com o sol castigador que está, só mesmo as moscas conseguem voar, pois, até prova em contrário, as almas não voam... Ah, e se o nosso homem está rodeado de almas... de almas que lhe gritam torturantes «Fá-lo!». Como é possível que ninguém mais as ouça?... - Onde está o vosso especialista das palavras certas?? - parece perguntar a mulher de carne e expressão secas, que àquele lugarejo esquecido por Deus, do Sonho Americano só o desemprego e a miséria chegaram. Até o xerife, janota e já de braços alimentados e tez mais rosada, veio da cidade, a largas milhas de distância. Ele, cavaleiro sem cavalo, ordena-lhe que se retire - Para trás da linha de segurança. Melhor para casa, e pode levar as moscas! - Esta última parte não a diz, claro, as sente-se-lhe na voz incomodada e politicamente correta. - A gente resolve isto!

"Isto" é o pais dos seus filhos...

E ele, o pai, o marido, teria talvez acreditado nela, teria provavelmente adiado a morte para o acaso da vida futura, mas o brilho dos carros não lhe permite ver a sombra do rosto da mulher na ombreira da porta.

O sorriso mantém-se... ele perdera entretanto a coragem, que a coragem é como o tubarão, que, se o sangue não lhe chega aos sentidos poupa a vítima, que acabará eventuamente por morrer do pânico, mas não da bala... Alegorias metafóricas à parte, que o mar está muito longe desta secura de road movie, o seu tubarão havia-lhe rodeado a dor por alguns instantes, mas não tendo avistado sangue foi embora para as águas quentes da costa, antes mesmo de a polícia chegar.

E agora? O revólver não está registado, mais problemas, talvez passe a noite na cadeia... Ah... Que chatice! E que pouca vontade ele tem de passar a noite na cadeia! A sombra ali está tão agradável... a árvore, tão frondosa... Como é possível nunca ter reparado nela a não ser para descarregar águas?

Não, não vai passar a noite na cadeia! E sorri ainda mais, pela coragem da decisão finalmente tomada!

Afasta ligeiramente a mão da cabeça, vira zombeteiro o olhar para o xerife, e antes que possa focar-lhe a cara sob o escuro da aba do chapéu, uma saraivada de balas crava-se na árvore atrás dele, algumas levando já o seu sangue.

A mulher grita. A voz dela é o único som a quebrar a tórrida paisagem que para um português seria quase tão grande e tórrida como a alentejana...

O marido jaz no chão, no banho vermelho e sombreado pelas folhas opacas. No seu rosto, um enigmático sorriso de agrdecimento pela colaboração dos homens da lei!

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Moral da história em forma de pergunta para xerifes de filmes americanos: Mas que ideia estúpida é essa de apontar uma arma a quem se está a querer matar?