domingo, 21 de junho de 2009

Conde Reis

Há pessoas que deixam marcas na nossa vida. E há as que deixam marcas no nosso ser.

Entre umas e outras a diferença está em nós, nos marcados. No quanto deixamos ou não essas marcas fazer parte dos nossos mais pequenos gestos inconscientes.

O Conde Reis, um senhor de uma idade respeitável, magro de compleição ágil e com aqueles olhos carinhosos sempre por detrás dos óculos graduados era, antes de mais, um Colega com quem tive a honra de trabalhar. Não um colega desses que a gente encontra aos pontapés e que na primeira oportunidade com o mesmo pontapé nos afastam. Não. O Conde Reis era um Colega com letra grande, como letra grande só podem ter as pessoas que nos marcam. E o Conde Reis marcou-me. Marcou-me com a sua sabedoria que eu, inspirada na respeitável barba branca ele ostentava e que ainda teimava em ter alguns fios de juventude escura, tinha por milenar. Marcou-me na serenidade da sua voz sempre calma que o seu nome nobiliárquico parecia impor. Marcou-me nos desenhos momentâneos que rabiscava na toalha do restaurante para entregar as plantas dos cenários dentr do prazo que normalmente terminava entre o conduto e a sobremesa. Marcou-me na humanidade que sua fragilidade e insegurança por vezes denunciavam em entrelinhas que só eu acreditava conseguir ler. E marcou-me no olhar de criança maravilhada que fazia quando via as minhas luzes. “Só tu sabes iluminar os meus décors, Dina. Que bonito!”. Era um “Que bonito!” tão sincero, como sinceros são os olhos dos artistas diante do vislumbre.

Nós entendiamo-nos no nosso amor pela arte visual das coisas simples e bonitas. «O simples é sempre o mais difícil, mas será sempre o mais bonito» disse-me ele certa vez, como que dando um conselho de ancião à novata da tribo. Sempre nos entendemos. Desde o primeiro dia que trabalhámos juntos e que ele me recomendou um livro que eu viria algum tempo depois a comprar: Da Cor à Cor Inexistente.

Na nossa simbiose harmoniosa de crianças maravilhadas ele criava os cenários e eu iluminava-os. E ficava bonito, o nosso trabalho, ah se ficava!

Há uns 3 meses telefonei-lhe, assim, sem mais nem menos, para saber como estava. Conversámos animadamente e animadamente nos despedimos. Alguns dias depois, por engano, voltei a ligar o número dele (o meu destinatário era, desta vez, o Costa Reis). Depressa ambos nos aprecebemos da minha gaffe. E despedimo-nos rindo... e eu pedindo desculpas pela minha “cabeça de vento”.

Esta semana pensei em telefonar-lhe. Desde aquela gaffe que não sabia nada dele. No entanto os dias passaram e a semana terminou sem que eu tivesse cabeça, de vento que fosse, para lhe ligar.

Hoje o telefone tocou. No mostrador surgiu o nome “Conde Reis”. Estranhei... muita coincidência...

Do outro lado o Carlitos diz-me “Não, Dina, não é o Conde Reis”. A notícia que ele me deu escusava de ser dada. Assim que o ouvi a ele em vez do dono do telefone entendi de imediato o evdente: o Conde Reis falecera!

Na passada quarta-feira, perdi um camaradas de trabalho. Perdi um amigo. Perdi uma pessoa que deixou uma marca “bonita” no meu ser.

Vou ter saudades suas, Conde Reis, mas conforta-me saber que se o Céu existir terá, com certeza, uma luz infindamente bela para os seus décors.

Desenhe em paz, meu amigo!

domingo, 14 de junho de 2009

Testamento

Da vida,
quando eu morrer,
levarei somente a memória daquele dia triste
em que te vi partir.

De resto
nada quero levar que não seja meu.
Já pesada me será a terra!

Quero ir leve como a penugem da ave que deixa o ninho.
E a última folha seca que abandona silenciosa a árvore no Outono.

À parte disso
Lego à vida tudo o que sou
Ao momento da morte.

A ela devolvo o óvulo que me pariu
No corpo mutante e seguro
Que me fez crescer.

Ao vento jogo os sonhos que deixei adormecer
Para que brisas de vidas futuras
Os despertem em portos nunca dantes atracados.

Ao mar do meu país,
Verde e azul como o olhar que tenho,
Deixo a espuma da saliva dos beijos que dei,
Deixo o sal das lágrimas que nunca chorei
E as ondas que banharam as praias da minha infância.

As noites de sonhos bem dormidos
Entrego à Lua,
Senhora das horas escuras
do meu passado nas insónias mil vezes revivido.

O meu riso
Deixo aos homens a quem roubei poesia suficiente
Para me fazerem rir.

As mentiras que contei,
De irrisórias e inofensivas,
Deixo aos conjuges infelizes
Que com elas se recuperem
No leito dos homens perfeitos
Ou no antro das meretrizes.

O que tenho de mal,
defeitos meus com os quais pequei,
Lego ao sabor do tempo
Que, ciente estou, algo se aproveitará
Pois à hora deste poema
Não matei, não roubei, respeitei mãe e pai
E se cobicei homem alheio
A Biblia não me condena!

Quando eu morrer não me chorem
Que eu não vou a lado nenhum.
Convosco fica o meu silêncio,
a parte de mim que calo para vos deixar.
E a graça que tenho,
Que os mortos não necessitam de nome.

E a longa caminhada que fiz,
de passos lentos e inseguros,
Lego ao chão,
Companheiro dos meus pés,
Quando o passo lhes faltou.

Tudo deixo,
Para que o pó ao pó volte,
E as cinzas às cinzas.

A exepção que faço
São os teus olhos escuros,
Que quando eu morrer,
Os deixarei mirarem-me uma última vez
Com o aceno da mão e o beijo lançado no ar,
Com o “te amo” intemporal
Dos amantes condenados.

Quando eu morrer
Que morra finalmente comigo
A única coisa que tenho:
este amor insano e ridículo
e todas as vãs ilusões de te ter tido!


(para o Zirão, a quem em tempos amei com a despreocupação das coisas simples e naturais)
Que tenhas um dia bom. Feliz Aniversário!